Relatos de líderes mostram que o mundo corporativo ainda não está pronto para acolher mães, apesar dos avanços. Flexibilidade, empatia e políticas inclusivas são apontadas como caminhos para a mudança.
Ao receber o convite para assumir uma diretoria, Kuntuala Zeli descobriu que estava grávida. A diretora de vendas da Oracle entrou em pânico. “Até os seis meses de gestação não conseguia falar sobre o assunto no trabalho”, relembra. Só tornou pública a gravidez durante um evento pós-pandemia, quando a barriga já era visível. Seu maior medo: que a maternidade prejudicasse sua ascensão profissional.
Após dois meses de licença, decidiu antecipar o retorno, receosa de não ser mais vista como profissional de alta performance. Mas foi surpreendida pela sensibilidade do RH e do presidente da companhia, que a incentivaram a completar o tempo de licença. De volta ao trabalho após o nascimento do segundo filho, Zeli curtiu cada momento da licença e ainda foi promovida.
Demissões Após Licença-Maternidade Ainda São Realidade
A experiência de Zeli não é a regra no mercado corporativo. Segundo pesquisa de 2023 do portal Empregos.com.br, 56,4% das brasileiras já foram demitidas ou conhecem alguém que perdeu o emprego ao retornar da licença-maternidade. Um estudo da FGV de 2018 revelou que metade das mulheres está fora do mercado dois anos após a licença — a maioria por demissão sem justa causa.
A economista americana e Nobel Claudia Goldin nomeou esse fenômeno de “penalidade da maternidade”. Sua pesquisa mostra que a maior disparidade de gênero no mercado ocorre após o nascimento do primeiro filho, momento em que muitas mulheres mudam a forma de encarar a própria carreira.
Quando a Competência Não Protege
Carolina Ragazzi foi pioneira: primeira mulher a se tornar vice-presidente de investment banking do Goldman Sachs no Brasil. Brilhante, bem paga e com trajetória sólida, acreditava que sua competência a blindaria dos impactos da maternidade. Mas após o nascimento do terceiro filho, o cenário mudou: assédio moral, afastamento de projetos e pressão para retomar atividades presenciais durante a pandemia.
“Fui inocente de pensar que passaria ilesa. Era a única mulher na área e a primeira a ter filho. A maternidade me tornou vulnerável aos olhos da liderança”, conta. Após uma licença médica, formalizou uma denúncia contra a empresa. O banco nega as acusações. Carolina destaca que a transformação cultural precisa ser coletiva: envolve empresas, líderes, políticas públicas e, principalmente, a mudança de mentalidade em casa e no trabalho.
Ansiedade e Incertezas no Retorno
Adriana Alcântara, hoje general manager da Audible Brasil, viveu a maternidade com sentimentos semelhantes. Grávida aos 37 anos, acreditava que sua senioridade seria uma aliada. Mas o retorno foi marcado por meses de incerteza, com a empresa sem definir sua posição nem local de trabalho.
Ao migrar para a Apple, enfrentou nova dificuldade: única mulher na liderança, viajava quase o mês inteiro enquanto tentava cuidar da bebê recém-nascida. “Foi caótico. A maternidade redefine prioridades e mostra que damos conta de muito mais do que imaginávamos.”
Falta de Empatia na Liderança Agrava Desigualdade
Elke Mittseldorf, executiva com passagens por gigantes como Bayer e Novartis, viu na escolha de ter apenas um filho uma forma de equilibrar maternidade e carreira. No início, contou com uma gestora compreensiva. Depois, sob um líder inflexível, enfrentou jornadas exaustivas e teve que adaptar suas demandas familiares aos finais de semana. Hoje, lidera suas equipes com foco em flexibilidade e acolhimento, promovendo home office, horários adaptáveis e empatia.
Mudança Começa Pela Cultura Empresarial
Empresas como Nestlé, Natura, Pfizer, L’Oréal, Mondelez e Grupo Boticário já adotam práticas inclusivas para mães e pais. Oferecem jornadas flexíveis, berçários no local de trabalho e salas de aleitamento. Mas ainda há um abismo a ser superado: 75% do trabalho não remunerado no Brasil recai sobre as mulheres, segundo o IBGE.
Para Joana Fleury, diretora da divisão de produtos profissionais da L’Oréal Brasil, o debate precisa incluir os homens. “Se gestar é só da mulher, o pós-nascimento não precisa ser. A equidade real só virá quando os homens também forem parte ativa da parentalidade.”
Licenças Iguais para Mães e Pais
A CLT garante apenas cinco dias de licença-paternidade. No entanto, algumas empresas já oferecem políticas mais equitativas. O Grupo Boticário implantou a Licença Parental Universal, com 120 dias para qualquer responsável legal. Diageo e Microsoft também adotaram medidas semelhantes, oferecendo até seis meses para homens e mulheres.
“Precisamos começar a perguntar aos pais executivos como eles conciliam tudo, para dividir essa carga com as mulheres”, propõe Joana.
Maternidade como Espelho e Catalisador
Joana Fleury teve três filhos em meio à ascensão na carreira. A maternidade a fez se reconectar com seus valores e propósitos. “É como se um espelho gigante surgisse. Você passa a enxergar tudo que estava abafado”, diz.
Já Elis Rodrigues, CFO da General Mills, percebeu que a maternidade não era um freio, mas um motor. “Voltei da licença do meu segundo filho com a clareza de que poderia ser uma mãe presente e também uma executiva ambiciosa. E isso me fez mais completa.”
O Que a Maternidade Ensina às Líderes
Priorização, gestão de tempo, empatia e resiliência são habilidades que mães trazem para o mundo corporativo. Giovana Pacini, CEO da Merz Aesthetics, vê paralelos claros entre liderar uma empresa e criar filhos: “As fases mudam, as pessoas mudam, e precisamos nos adaptar. A maternidade me tornou uma líder mais sensível e estratégica.”
Conclusão: A Mudança É Possível — e Urgente
O mundo corporativo ainda está distante de ser um espaço acolhedor para mães. Mas histórias como as de Kuntuala, Carolina, Adriana, Elke, Joana, Elis e Giovana mostram que é possível ressignificar o papel da mulher na liderança, desde que as empresas estejam dispostas a ouvir, adaptar e transformar.
A maternidade não deveria ser um obstáculo, mas sim reconhecida como um ponto de virada — de amadurecimento, competência e humanidade — na jornada profissional de qualquer mulher.